Blog com sintomas acentuados de jetlag, sobre lugares, pessoas e outras coisas. Unipessoal. Partilhável.

segunda-feira, outubro 30, 2006

Andreas-Andrew

Se tivesse que eleger a figura mais caricatural desta minha 'aventura' londrina, elegeria, sem hesitar, o meu landlord Andreas. Nome grego que o oportunismo (no sentido de 'sentido de oportunidade', claro) transformou num anglófono e sensaborão Andrew.
Cipriota, nos seus 50 e picos anos, vive em Londres desde 1970 mas continua a falar um inglês tão imperfeito como quando aportou, há 36 anos, em Dover (de lá para cá apenas deve ter apreendido alguns termos relacionados com business).
Antigo dono de uma loja de kebabs, viu o seu negócio florescer até ao ponto de poder, com o seu aforro e vida monacal (quem sabe oriunda da ortodoxia grega), comprar não só a loja mas o prédio inteiro nesta Hornsey Road, que na altura era um subúrbio para a working-class mas que hoje constitui a fronteira entre a Londres posh e civilizada de Angel e a Londres dos excluídos de Finsbury Park.
Daí até à reafectação dos seus recursos para negócio mais rentável, foi uma questão de tempo. Uma década. Talvez nem tanto.
Depois de algumas obras de melhoramento no miolo do edifício, conseguiu criar uma espécie de pensão nos 1º e 2º andares e a sua própria casa familiar, no groundfloor, com entrada independente. Ali vive com a sua mulher Katie (não sei se o nome é o original) e com um dos filhos, pós-adolescente. O filho nunca o vi mas a Katie tem ar de mulher saída de uma novela de Jane Austen. Estóica e conservadora (no sentido sócio-político e não religioso), é a esperta da família, sempre atenta e veloz a corrigir as alarvidades do marido. Funcionária bancária (sim, ela não deixou o seu emprego seguro no Bank of Ciprus, branch of London, porque isto do negócio imobiliário nunca se sabe com o que contar), veio para Londres estudar quando tinha 20 anos mas o máximo que deve conhecer da movida é um ou outro pub em Trafalgar Square, onde bebeu cidra com as amigas e caiu para o lado. Dos anos 70, a única coisa de que se deve lembrar é a festa do Jubileu da rainha ou o nascimento da filha da Princesa Ana, acontecimentos que seguiu com atenção através da insuspeita BBC.
Imagino-a, escandalizada, a mudar de estação de rádio aos primeiros acordes de Clash ou Sex Pistols, preferindo uma que passasse os hits do Festival da Eurovisão.
No sossego do seu lar, Andreas mata o tempo a fazer a contabilidade familiar (empreendimento que deve abandonar quando surge a primera conta de dividir) e a escutar a Radio Ciprus da sala de estar, que ainda hoje, em vez de janelas para a rua, tem um portão azul, corrido, que era a entrada da sua velha loja de kebabs. De quando em vez arma-se em plumber, de chave-inglesa na mão, e percorre todos os andares do prédio para arranjar uma suposta falha mecânica no sistema de aquecimento central (que está quase sempre desligado para não gastar). Tudo não passa, obviamente, de uma operação patética de verificação das condições em que os seus tennants (duas americanas, um americano, um irlandês e um português, todos estudantes post-graduate, thirty-something) deixaram a cozinha e os WC's. Quase sempre dá de caras com um ou outro de nós. Fica vermelho, atrapalhado e gagueja como uma criança de 9 anos quando faz asneira. Na mais pequena oportunidade, chega mesmo a entrar nos quartos (recorde-se, propriedade privada dos arrendatários, a partir da celebração do contrato de 5 páginas), com olfacto canino, para tentar perceber se houve alguma actividade subversiva durante a noite. Tudo feito ao melhor estilo de espionagem John le Carré, autor da única obra que deve ter começado a ler na versão original, quando veio para Londres , mas que ainda não terminou por dificuldades linguísticas.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Está assumido, com este post,o compromisso definitivo de um diário londrino!!!!!!!!!!
FT

3:23 da tarde

 
Blogger San said...

Ia tudo muito bem, estava já a bater-te palmas pela belíssima crónica, quando sintonizaste o John LeCarré com o teu senhorio levantino !

John LeCarré?!?!
Não seria antes Leslie Charteris? John Gardner?

10:16 da tarde

 

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