Blog com sintomas acentuados de jetlag, sobre lugares, pessoas e outras coisas. Unipessoal. Partilhável.

quinta-feira, dezembro 30, 2004

Kotleen Beach, Gokarna.

Saio de Goa à procura de um sítio onde não haja sinais de Portugal. Apanho o autocarro em Margão (hub comercial ao sul de Goa) com destino a Gokarna, no Estado de Karnataka.
A primeira paragem, para transbordo, acontece em Karwar, cidade onde a Indian Navy está a construir um dos maiores complexos militares de toda a Ásia (nome de código: ‘Seabird’). O cenário é impressionante: uma paisagem de cortar a respiração invadida por um estaleiro que faz adivinhar um complexo militar 20 vezes superior, em dimensão, à nossa Base Naval do Alfeite. Antes deste local, avisto ao longe Angediva, a “ilha dos amores” cantada por Camões nos Lusíada e ponto onde aportaram as naus de Vasco da Gama na sua primeira viagem à Índia.
Chego a Gokarna seis horas depois de ter deixado Margão (não mais de 150 km separam os dois pontos). A noite não vai demorar muito a baixar, portanto, o objectivo fundamental é encontrar um local para dormir. Gokarna é uma hipótese. Esta é uma pequeníssima e tranquila cidade de peregrinação religiosa (a peregrinação turística começou a dar os seus primeiros passos só na década de 90). Reza a mitologia hindu que, aqui, Shiva renasceu a partir da orelha de uma Vaca. Talvez por esse facto, foi erigido o Templo (medieval) de Shri Mahabaleshwaw, que atrai ao local milhares de crentes.
Não fico na cidade. Vou directamente para Kotleen Beach, a 20 minutos de distância.
O riquexó deixa-me no cimo da falésia. A partir de agora terei que fazer o percurso a pé. Chego a Kotleen já de noite, mas ainda consigo ter uma ideia geral do local: uma praia igual a tantas outras ao sul da Índia, com os inevitáveis coqueiros e meia dúzia de restaurantes com quartos para alugar. A única diferença está na ondulação, que é bastante forte nesta praia. Não consigo um único sítio para ficar. Tudo está “fully booked”. Pondero dormir na areia, mas o frio que se faz sentir tira-me essa ideia da mente. No entanto, regressar a Gokarna está fora de questão. Nenhum táxi me vai lá deixar àquela hora (considerando que havia algum táxi disponível), e voltar a pé inclui um troço pelo meio da floresta.
Depois de uma prospecção mais demorada, consigo finalmente um sítio disponível, a 50 Rupias por noite (1 euro). Apesar de desconfiado, lá fui inspeccionar a suite: Uma palhota entre a floresta e a praia, na fronteira entre uma várzea, um curral e a cabana de uma família de hippies ‘old fashion’ (possivelmente da mesma estirpe daqueles que até à década de 90 ocupavam as praias de Goa e que, entretanto, se refugiaram mais a sul, devido à excessiva comercialização daquele Estado).
A palhota, guarnecida com um velho e sujo colchão, não tinha electricidade, apenas uma pequena vela acesa deixada pelos inquilinos anteriores (que, entretanto, devem ter encontrado um local mais decente para ficar). Os mosquitos são mais que muitos lá dentro, facto que prenuncia uma noite atribulada (o repelente ficou esquecido em Panjim).
Deixo a bagagem na palhota e vou para a praia apanhar um bocado de ar fresco e pensar: Fico ali e sou devorado pelos mosquitos ou vou-me embora, pela floresta, e sirvo de jantar fácil a uma qualquer king cobra local? What to do?! What to do?! :-(

quarta-feira, dezembro 29, 2004

"shanti-shanti"


praia de palolém - Goa (Índia)

antes do tsunami # 3


placard em Goa - Índia

antes do tsunami # 2


praia de bambolim - Índia

Índia - United Colours # 4


Índia - United Colours # 3


Índia - United Colours # 2



Índia - United Colours # 1



curva perigosa



ultrapassagem à vista


mot

antes que anoiteça


Regresso à capital de Goa pela "highway" que vem do Sul e que segue para o Estado de Maharastra. A dada altura passo por um placard verde, enorme, que anuncia: Panaji - 19 km Mumbai - 667 km Recordo-me imediatamente de um outdoor que vi em Mumbai e que dizia algo como "Heaven and Hell both are on Earth" (eu diria mais: não só estão na Terra como até estão no mesmo país). Desacelero. Vou devagar pela berma. Paro. Inverto a marcha (as highways indianas que vi não têm separador central). A manobra é perigosa mas ainda assim arrisco. Sento-me em frente ao placard. Tiro-lhe uma foto. Sorrio e prossigo. Cartograficamente, estou mais perto do Paraiso do que do Inferno.

sábado, dezembro 11, 2004

Café Venite - Goa

O Venite é o ponto de encontro, em Panjim, de muitos estrangeiros que viajam pela Índia e que estão de passagem por Goa. Conheci-o através da Tiziana, uma globetrotter italiana que está a terminar uma viagem pela Ásia, inicialmente prevista para 5 meses mas que já ultrapassou os 8 meses. O mobiliário, em madeira escura, contrasta com o colorido das paredes, rabiscadas à pressa com apontamentos de viagem, números de telefone, pensamentos avulsos, aforismos, etc. Este café está para Goa como o Peter’s está para os Açores (eu não conheço o Peter’s, mas é esta a ideia que eu tenho dele). É um sítio onde todos têm sempre alguma coisa para contar e, por isso, prestar uma atenção exclusiva ao nosso interlocutor torna-se uma tarefa difícil. O Venite é um autêntico stock exchange de informação sobre este país e sobre outras paragens do Oriente. As conversas desamarram-se e entrecruzam-se no ar. Aqui aprendi, por exemplo, um pouco mais sobre essa enorme teia de aranha que faz da Indian Railways a maior companhia ferroviária do mundo. Aqui soube, também, que há um sítio na net que indica quais são os melhores spots para dormir, de borla, nos aeroportos de todo o mundo, enquanto se aguarda pelo vôo de ligação (informação que me vai ser útil quando, de regresso a Portugal, tiver que passar 11 penosas horas no Chatapatri Shivaji, em Bombaim).
A música que passa imprime ao Venite uma atmosfera verdadeiramente cosmopolita. Aqui não se ouvem sonoridades saídas daquelas compilações chill out reproduzidas até à náusea, que fazem as delícias dos turistas que procuram na Índia um exotismo readymade. Caetano Veloso, Cesária Évora, Amália, Nightmares on Wax, são presenças habituais.
Por tudo isto, O Venite é um lugar de excepção.

sábado, dezembro 04, 2004

The Motorcycle Days # 3

Goa é uma festa!
Fui à Kala Academy, onde se realiza o Festival de Cinema Indiano, para tentar obter a creditação. Estão dezenas de pessoas à porta do Press Information Center. Não me apeteceu estar à espera e fui assistir à Bollywood Parade na avenida marginal. Seria mais apropriado designar este evento “Boringwood Parade”. Muito mais interessante do que olhar para os carros alegóricos foi ver a excitação das pessoas locais na expectativa de encontrarem lá em cima alguma superstar. Ficaram (ficámos) todos muito desiludidos. Não havia estrelas mas sim alguns figurantes espalhafatosos. Saí dali e fui a Arpora com um casal português que conheci, ter com um tipo que aluga scooters a 120 Rupias por dia (2 euros). Escolhi uma Cinetic Nova EX azul. Fomos até à praia e ao Flea Market, na vila de Anjuna, conhecida internacionalmente pelas suas rave parties, animadas por DJ Gil.
Reencontrei lá o par de olhos mais bonito do mundo, exactamente no mesmo sítio do ano passado, a vender os mesmos saquinhos de especiarias. Uma palete de cores difícil de descrever. Regressámos por uma estrada deserta, por entre os campos de arroz. Tirei o capacete e acelerei até aos 40 km/hora. Sou o rei do asfalto!

The Motorcycle Days # 2

22h40. Já estou dentro do Konkan Kanya Express, o comboio que me levará a Goa. Se tiver um bocado de sorte, a bateria do portátil cooperará e conseguirei acabar este post.
A cidade tem duas grandes estações: A Chatapatri Shivaji Terminus e a Mumbay Central. Da primeira partem comboios para o Este e para o Sul da Índia. Da outra saem os comboios para o Norte.
O CST está num edifício fantástico e constitui um verdadeiro ícone da arquitectura vitoriana. Está bem conservado por fora mas por dentro a coisa muda um bocado. Apesar de tudo é muito funcional – tem que ser, uma vez que, diariamente, chegam e partem daqui cerca de 2 milhões de passageiros. Não há, naturalmente, salas de espera (ou se há eu não as encontrei), pelo que as pessoas ficam sentadas ou deitadas no átrio principal, tornando a movimentação de quem se quer dirigir para os comboios uma verdadeira prova de resistência.
Fui o primeiro a chegar ao compartimento, onde existem 4 camas. Duas superiores e duas inferiores. Na tabela afixada na porta li o meu nome escrito e a cama que me foi atribuída. Fiquei com a de baixo, do lado direito de quem entra.
Os meus companheiros de viagem vão chegando um a um. O primeiro foi um tipo enorme vestido com uma túnica branca. Não deve falar inglês. Sorri enquanto abana a cabeça de um lado para o outro, daquele jeito que só os indianos sabem fazer. Está a querer ser simpático. O segundo é um tipo de uns trinta e poucos anos, vestido à ocidental, de poucas palavras e nenhum sorriso. Entretanto chegou o terceiro, o mais falador de todos. Já me perguntou de onde eu era e para onde ia. Fez o mesmo com os outros dois. Há-de querer saber mais coisas porque este é o tipo de passageiro que só se cala quando adormece.
Estou na carruagem da 1ª classe – Deluxe (na Índia tudo o que está ligeiramente acima da média é Deluxe). Os standards são bastantes diferentes dos nossos. As restantes classes tem bancos corridos de napa coçada ou madeira e em vez de janelas têm grades. Olhei para dentro de uma e vi que o número de passageiros excedia descaradamente a lotação máxima. É compreensível. Neste período do ano muita gente que normalmente vive em Mumbai vai para Goa ou mesmo para outras cidades do Estado de Marahastra, ao qual pertence Mumbai, para passar o Natal (os cristãos) ou o Divali (os Hindus), festividade que tem a sua apoteose no final de Novembro. Os comboios para o Sul são poucos e a opção por via aérea é incomportável. Por isso, o importante é mesmo conseguir um lugar no comboio e chegar ao destino.
Este comboio faz parte da carreira normal da Indian Railways. Há também os comboios especiais, para turistas, que são uma espécie de resorts sobre carris. Uma viagem de uma semana chega a custar 1000 Euros.
Já ouvi o silvar da automotora, que anuncia a partida. São exactamente 23 horas. Um dos mais importantes footprints deixados pela Inglaterra neste país é a pontualidade (característica que os ingleses perderam há muito mas que conseguiram vender ao mundo como elemento cultural inabalável). Agora esperam-me pelo menos 12 horas de viagem.
Hoje é dia 28 de Novembro de 2004. Está mais calor em Mumbai do que em Lisboa.


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